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Uma Igreja de dor e provada no sofrimento

  • Foto do escritor: O Oratório
    O Oratório
  • 29 de ago. de 2019
  • 8 min de leitura

Atualizado: 4 de set. de 2019

Por Kennyel Franco

Como a cabeça, para o dizer com as palavras de Santo Ambrósio, é “a cidade real” do corpo, e, sendo dotado de maiores qualidades, dirige naturalmente todos os membros, aos quais sobrestar para olhar por eles, assim o Divino Redentor empunha o timão e governa toda a república cristã. [...] Acresce ainda que Cristo do céu vela sempre com particular amor pela sua esposa intemerata, que labuta neste terrestre exílio; e quando a vê em perigo, ou por si mesmo, ou pelos seus anjos, ou por aquela que invocamos como Auxílio dos Cristãos, e pelos outros celestes protetores, salva-a das ondas procelosas e, serenando e abonançando o mar, consola-a com aquela paz “que supera toda a inteligência” (Fl IV, 7).

- Papa Pio XII. Encíclica Mystici Corporis Christi, 2, “b”, 36.38


A doutrina de ser a Igreja o Corpo Místico de Cristo nos vem das Sagradas Escrituras; o Apóstolo São Paulo nos apresenta esta verdade, primeiramente, em sua Carta aos Coríntios (cfr. I Cor XII, 12-14), quando mostra que, tal como um corpo tem suas estruturas e membros, assim também a Igreja ora fundada por Nosso Senhor sob São Pedro, o primeiro Papa. Noutras tantas ocasiões, o Apóstolo dos Gentios vai nos lembrar esse mesmo mistério (cfr. Rom XII, 5; Ef III, 6. V, 23; Col I, 18.24), sendo estas passagens a base para formar os belos sermões dos Santos Doutores e documentos pontifícios, aqui destacando as Encíclicas Satis Cognitum, de 29 de junho de 1896, do Papa Leão XIII, e Mystici Corporis Christi, de 29 de junho de 1943, do Papa Pio XII.

Partindo, portanto, desta premissa [da Igreja enquanto Corpus Mysticum], devemos nos recordar das palavras do Santo de Montfort: “Que grande honra serdes membros de Jesus Cristo! Uma honra, porém, que exige nossa participação no carregamento da cruz. Se a cabeça é coroada de espinho, será que os membros quereriam coroar-se de rosas?”[1], acrescida e belamente arrematada pelas palavras do Salvador: “Haveis de ter aflições no mundo; mas tende confiança, eu venci o mundo” (Jo XVI, 33), é então que haveremos de compreender a situação da Igreja enquanto peregrina neste mundo, e que tem se agravado cada vez mais nas últimas seis ou sete décadas.

É certo que não deveríamos ser diferentes Daquele que nos redimiu, e, se Ele sendo imaculado muito sofreu, nós, pecadores, também haveremos de sofrer; desde sempre se soube desta verdade. Ocorre, contudo, que ao olharmos para a Igreja em sua situação atual, indagamo-nos o motivo de tantas adversidades, e confrontado com o fato de que nós, os míseros pecadores, haveríamos de sofrer, indagamo-nos: também é preciso que a Igreja passe por este sofrimento? É promessa de Nosso Senhor: “Non prævalebunt” (cf. Mat XVI, 18), mas parece-nos, muitas vezes, que estamos distantes desta aliança e têm prevalecido os inimigos e infiéis. Se no início haviam onze fiéis e um que foi o traidor, nos parece haver hoje onze traidores e um fiel, ainda assim amedrontado.

“Sem dúvida houve muitos santos, papas, clérigos, homens e mulheres piedosos, místicos e visionários que viram a tempestade se formando no horizonte, mas talvez nenhum deles tenha concebido a que ponto poderia chegar o abandono da fé tal qual o vemos em nossos dias”[2]. O Papa Leão XIII, quando em 1880, durante uma Missa, teve uma visão de demônios e ouviu a voz sinistra de Satanás desafiando Deus, dizendo que ele poderia destruir a Igreja e levar o mundo inteiro para o inferno se tivesse tempo e poder suficientes, tendo após, composto a oração de São Miguel Arcanjo, determinando que fosse rezada pelos Padres e fiéis após a celebração da Santa Missa, para combater estas forças infernais; ou, quando em 1909, durante uma Audiência Geral, São Pio X teve a visão de um Papa que fugia de Roma por entre os corpos dos Cardeais, chegando ele a exclamar: “O que vi foi aterrorizante!”; nenhum destes, certamente, cogitariam uma crise nas proporções pelo qual a Igreja passa.

Algo, talvez, sem precedentes, aonde os seus próprios membros lutam para destruí-la, aonde a Igreja tem que enfrentar dificuldades ad intra e, ainda maior, a grande crise moral e cultural ad extra, que acaba ganhando forças também entre os seus.

“- Seria este o início do fim?”. Muitos poderão se perguntar, afinal, são tantas desgraças que a cada dia aparecem! Comprova-se efetivamente que o inimigo de nossas almas anda trabalhando diuturnamente, e mais, conseguido seguidores para impetrarem os planos demoníacos contra a sociedade, a moral, os bons costumes, a família, a Igreja, quiçá contra o próprio Deus! Colocar-se-á em cheque a promessa de Nosso Senhor e muitos perderão até mesmo a esperança, afinal, os historiadores dizem que se a Igreja perde três gerações seguidas, logo perderá uma nação inteira. Estaríamos regredindo ao invés de progredir?

Soma-se a este caótico cenário o grande êxodo de fiéis e, até mesmo, clérigos. A presente geração já não se interessa por aquilo que seus pais, mesmo que obrigados, buscavam semanalmente nas Missas; o aumento das seitas e heresias e a gradual diminuição de fiéis católicos nos fazem pasmar.

Ao longo dos últimos cinqüenta anos, boa parte da hierarquia da Igreja Católica abandonou o rebanho ao se recusar a enfrentar os males da modernidade, ao falhar em ensinar com firmeza as verdades de Jesus Cristo e em preparar os fiéis para o combate espiritual, depondo suas armas diante da fúria diabólica dirigida ao povo de Deus. Portanto, como poderíamos deixar de nos surpreender com o fato de as ovelhas abandonarem os pastores depois que eles as abandonaram?

- Michael Voris. Op. cit., p. 37

Este panorama nos é perturbador quando examinado minuciosamente, e os poucos que são fiéis ao chamado de Nosso Senhor se angustiarão e hão de querer se debulhar em lágrimas diante do Santíssimo Sacramento, arrependidos da situação em que nos encontramos e que parece piorar incomensuravelmente a cada dia, pedindo a misericórdia de Deus e a salvação destas miseráveis almas e, sobretudo, da Santa Madre Igreja.

Mas, na contramão do pensamento acima, se analisarmos esta situação, nos questionaremos o motivo pelo qual Deus ainda sustém todas as coisas e não as destruiu, tal como fez por diversas vezes na Antiga Aliança.

O católico deverá se lembrar de uma passagem do Gênesis, quando o Deus comunicara a Abraão que destruiria Sodoma e Gomorra devido seus pecados, pelo que, diante desta cena, Abraão tem com o Senhor um dos mais belos diálogos: “- Perderás tu o justo com o ímpio?”, indagava consternado o Patriarca. “Se houver cinqüenta justos na cidade, perecerão todos juntos? E não perdoarás aquele lugar por causa de cinqüenta justos, se aí os houver? Longe de ti que faças tal coisa, e mates o justo com o ímpio, e o justo seja tratado como o ímpio, isto não é próprio de ti; tu que julgas toda a terra, de nenhuma sorte farás tal juízo”. Conhecemos bem a história, e sabemos que Abraão, não encontrando cinqüenta justos ainda insistiu, pedindo a misericórdia do Senhor por até dez que ali houvesse. A resposta foi a mesma: “Não a destruirei, por amor dos dez” (Gen XVIII, 23b-25.32c).

Os justos não foram encontrados, e Sodoma e Gomorra destruída. Passados alguns milênios, Nosso Senhor vai recordar esta passagem condenando Cafarnaum: “Por isso vos digo que no dia do juízo haverá menos rigor para a terra de Sodoma do que para ti” (Mat XI, 34).

Observa-se que diante disto os questionamentos hão de aumentar: “- Em meio a tantas desgraças a Igreja ainda permanece, por quê?”. Lhe respondo: “- Porque os justos que Abraão não encontrou em Sodoma e Gomorra, Nosso Senhor os encontra na Igreja!”. Não os vemos, pois, em sua maioria, estão enclausuradas, dentro de suas celas, fechados em suas Cartuxas e Mosteiros, vivendo longe de todo o bem e toda fama, mas sustentando com inabalável força a Igreja de Cristo pelas orações de súplica, enquanto também labutam conosco. Os justos são aqueles na Igreja Triunfante que não param de interceder por esta Igreja Militante. Ainda os encontramos; obviamente os que mais vemos e aparecem são os ímpios, os transgressores e pecadores, mas não são estes a verdadeira Igreja de Cristo!

A Igreja é muito mais do que o Papa, os Bispos e Sacerdotes, do que aqueles que estão revestidos do ministério sacramental. Todos os que mencionamos pertencem à Igreja, mas a companhia, na qual ingressamos através da fé, vai muito além, se estende para além da morte. Dela fazem parte Abel e Abraão e todas as testemunhas da esperança de que fala o Antigo Testamento, passando através de Maria, Mãe do Senhor, dos seus Apóstolos, através de Tomas Becket e Thomas Moro, para chegar a Maximiliano Kolbe, Edith Stein e Pier Giorgio Frassati. Dela fazem parte os desconhecidos, os inominados, “cuja fé só Ele conhece”. Dela fazem parte os homens de todos os lugares e de todas as épocas, cujo coração se expande, no amor e na esperança, até o Cristo, “autor e planificador da fé”, como o chama a Carta aos Hebreus (XII, 2). Não são as maiorias ocasionais que se formam na Igreja que decidem o seu e o nosso caminho. Eles [os Santos] são a verdadeira maioria determinante, segundo a qual nos orientamos.

- Preleção do Cardeal Joseph Ratzinger, quando Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, em 01 de setembro de 1990

Não há de se maquiar o atual cenário, cruzar os braços e ignorar é o que a hierarquia fez por várias décadas, formando assim leigos ineptos, que não são capazes de defender a Fé após a sua confirmação com o óleo do Santo Crisma. Não se dirá que está tudo bem, quando não está! A Barca de Pedro está navegando pelo mar revoltado, o céu revestido de trevas, tal como no sonho de São João Bosco, poderá se pensar não ter quem nos salve deste escarcéu, mas entre as encapeladas ondas que agitam a barca se verá surgir as colunas com o Santíssimo Sacramento, Salus Credentium, e a Virgem Imaculada, Axuilium Christianorum.

Santo Agostinho nos escrevia que a Igreja fala dos sofrimentos que ela suporta, por isso é que se canta com o salmista: “Muitas vezes me atacaram desde a minha mocidade, mas não prevaleceram contra mim” (Sal CXXVIII, 2). Das virtudes ditas teologais não nos deverá faltar a esperança de que, após essa turbulenta tempestade, nos há de vir a paz e a calmaria, se não nesta vida, certamente na Eterna, junto da Beata Virgem Maria, dos Anjos e Santos, e do Deus Todo-Poderoso.

A Igreja não há de ser desemparada, tampouco a promessa de Nosso Senhor deixará de ser cumprida, cabe àqueles que amam esta mesma Igreja lutar com todas as forças contra as investidas satânicas que partem de todos os lados e resistir às más águas que não deixarão de soçobrar a nau, contudo, avante! É o Senhor quem confiou esta missão, Ele, em sua onisciência, sabe o que pode ser feito por aqueles que se dedicam a dar tudo pelo Tudo, seja na vida apostólica seja contemplativa.

Muito bem dizia Dr. Plínio Corrêa de Oliveira, de saudosa memória, em seu ensaio “Revolução e Contra-Revolução”: “A verdadeira força da Igreja está em ser o Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Efetivamente, como ele acrescenta logo depois, não se explicaria a supervivência bimilenar desta instituição no meio da tantas perseguições, contrariedades e mesmo falhas de seus membros. “‘Alios ego vidi ventos; alias prospexi animo procellas[3]’, poderia Ela dizer ufana e tranquila em meio às tormentas por que passa hoje. A Igreja já lutou em outras terras, com adversários oriundos de outras gentes, e por certo enfrentará ainda, até o fim dos tempos, problemas e inimigos bem diversos dos de hoje[4]”.

Este é um panorama geral daquilo que atualmente é enfrentado, se confrontado com as promessas de Nosso Senhor e os mistérios de nossa fé qual resposta se esperará? Frouxidão, desânimo, medo? Ou há de se repetir a política perpetuada pelos prelados nas décadas precedentes, conformando-se ao mundo e suplantando a identidade católica pela modernista? A resposta deverá se basear na correta interpretação das Sagradas Letras, aquele que teme o sacrifício de sua consciência se revestirá das valorosas armas descritas por São Paulo (cfr. Ef VI, 10-24). Os que, por sua vez, temem o combate e optam pela vida morna e inerte, se esquecerão também das Escrituras:

Conheço as tuas obras, que não és frio nem quente; oxalá fosses frio ou quente; mas porque és morno, e nem frio nem quente, começar-te-ei a vomitar da minha boca.

- Apocalipse III, 15ss

[1] São Luís de Montfort. Carta aos Amigos da Cruz: Ed. Cleófas, 2007, p. 45


[2] Michael Voris. Militante: Restaurando o Catolicismo Autêntico: Ed. CDB, 2019, Introd., p. 35


[3] Vi outros ventos e lutei contra outras tempestades. Cícero. Familiares, 12, 25, 5


[4] Op. cit., 145.147

 
 
 

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